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A mansidão do barulho.

Em abril de 1999 inaugurei minha primeira morada, minha mesmo, própria, com escritura. Veio lá do Altinópolis, herança tercerizada que me coube da parte do meu avô José Lourenço de Castro, o pai da minha mãe. Avô rico, filho nobre, neto pobre!
De grande fazendeiro deixou um sítio para os cinco filhos e aos netos coube alguns ralos alqueires no curso natural das proporções que se afunilam a cada geração.
O meu quinhão transformou-se num apartamentozinho do Jardim Irajá. Na inauguração o Batata e o Difrente lá estavam, como tantos outros.
Lembrei-me deles, dos dois, daquelas noites intermináveis de centenas de encontros...
Aqui vai mais um texto do Batata, fechado em 7 de Janeiro de 2005.

A Mansidão do Barulho

O barulhento casal de maritatacas pousa na paineira. Hortência, continuando a esfregar roupa no batedouro da bica, desvia olhar buscando os pássaros camuflados na folhagem da gigantesca árvore. Endireita o corpo matronal, enxuga as mãos no avental e procura, a favor do sol, uma posição melhor para localizar os barulhentos.
Outros pássaros começam chegar. Logo são dezenas. A cacofonia estridente é tão irritante que até as galinhas do terreiro param de ciscar e olham na direção da algaravia. Joaquim, neto da Hortência, aparece na janela. Loguinho sai ao terreiro, acompanhado pelo irmão menor Tiago, ambos armados com estilingues. A avó passa-lhes um "pito", toma as atiradeiras. Volta ao tanque, enxágua as roupas ensaboadas e as coloca em uma bacia grande. Chega à escadinha que acessa a cozinha, pede uma canequinha com café. Diz: "Vou descansar as pernas no banquinho". Sentada, tira do bolso um cigarro de palha, acende. Recosta-se na parede da casa, olha a arvore amiga cheia de pássaros verdes e procura distingui-los entre as folhas.
Nas baforadas, as lembranças voltaram sua juventude.
Corpo alto e esbelto, torneado em linda plástica das jovens negras. Olhos puxados, porem grandes; testa alta e larga. Boca rasgada entre lábios carnudos. Cabelos geralmente cobertos por lenço branco . Colorido só nas festas. Humor alegre e comunicativo, gostava muito de cantar modinhas e musicas do coro da capela. Dois irmãos mais velhos; pais que mostravam o amor com severidade branda e tranqüila. Vida simples, felicidade suave .
Na festa da capela, reparou que o rapaz bonito reparava nela. Quase assustou quando percebeu que o rapaz era o Sebastião. Foram criados juntos, sempre muito amigos e ela não deu conta o quanto o Tião era tão rapaz.
De ontem para hoje tornou-se bonito e interessante. Ambos, naquela hora, experimentavam sentimentos semelhantes. Perceberam isso. Depois, por tempo, ficaram confusos demonstrando certa indiferença mútua. O namoro aconteceu após negaças . . .
Foi crescendo o amor, foi crescendo, crescendo no feliz casamento. Feliz mesmo. " Feliz até hoje ", pensou Hortência.
Desceu os olhos da copa amiga da paineira para a sombra da imensa árvore. Ali, sentado no banquinho de três pernas, Sebastião caprichava na arte de fazer balaios. Hortência adocicou com jovem ternura o seu olhar.
A filha, esperando a mãe beber o café, comentou:
--- Passarim barulhento. Ainda bem que buscaram rumo.
Hortência respondeu, meio distante:
--- Nem reparei.E sorriu com mansidão realizada...

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